DICA DE LEITURA: “AMIGO DE VERÃO”, DE ANDERSON OLIVIERI

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A dica de hoje do jornalista Anderson Olivieri – responsável pela comunicação do Cartório de Sobradinho – é a crônica “Amigo de verão”, de sua autoria:

Certas lembranças vêm como o ladrão – sorrateiras, desarrazoadas. Hoje, caminhando, notei como está alta a grama do parque do meu bairro. Logo em seguida, me lembrei do Nico. Não há qualquer relação entre os dois assuntos. Nico não é jardineiro, apreciador de vegetações rasteiras, capinador, nada. Se tem um ambiente que se liga a ele não é a terra, mas o mar. Nico entende da “grama que boia”, como dizia, em referência às algas marinhas, um mineiro que conheci no Espírito Santo no exato dia em que era apresentado ao mar.

Nico é personagem da minha infância. Ele morava numa habitação de pescador anexa a um condomínio onde meu pai alugava casa para veraneio, a 50 quilômetros de Salvador. Quando o conheci, fazia um ano que perdera o pai, afogado. Ele havia me dito, antes de contar a fatalidade, que era filho de pescador. Confuso, pois não achava verossímil um pescador morrer por afogamento, perguntei a ele o porquê da tragédia. Ele então detalhou que Nicão, bêbado, saíra para pescar sozinho num momento do dia em que a maré enchia. As ondas o tragaram para somente dois dias depois devolvê-lo à praia, inchado e sem vida.

Caminhava e pensava no Nico. Faz quase 30 anos que dele não tenho notícias. Era um adolescente perdido, largado, nunca apresentado ao amor, ao afeto. Lembro-me como se envergonhava do deboche que nós, meninos alheios à dor dos chegados, fazíamos de sua mão direita, cravejada por dezenas de verrugas esbranquiçadas sobre sua pele preta. Jamais revidou uma troça, não feria com o ferro que era ferido.

O que mais nos unia era a bola. Nico integrava a categoria dos baianos habilidosos, de gingado servil ao samba no carnaval e à humilhação de oponentes nos “babas” da praia. Era difícil parar aquele que se apresentava como futuro atacante do Bahia. Pensando nele na caminhada de hoje, lembrei-me de como sorria ao jogar futebol. Talvez aquela fosse a única válvula de escape de uma existência de sofrimento.

Nico tinha uma vida miserável. Naquele tempo, eu não possuía compreensão social, mas percebi, mesmo criança, no dia em que o chamei em casa para brincar, sua vida indigna, desumana. Na realidade não havia casa. Tudo se restringia a um cômodo, escuro, úmido, com colchões, papelões, utensílios domésticos, tudo caoticamente espalhado pelo chão. Uma masmorra. A única organização presente estava nas prateleiras do canto, onde se exibiam as garrafas de pinga que a mãe vendia num balcão grudado ao quartinho.

Tudo ao redor do Nico revelava uma pobreza interminável. Éramos socialmente muito desiguais, mas revê-lo era uma das minhas motivações para querer voltar a Salvador nos verões. Dentro dele havia valores e conhecimentos que me cativavam. Fiquei espantado com sua técnica de tirar peixe do anzol quando fomos pescar nas piscininhas que se formavam na praia. Fisgado o peixe, ele antes o chicoteava na água para aquietá-lo. Só depois o desprendia e enfiava na sacola. “Assim você não precisa brigar com ele. Peixe vivo é igual sabão”, me ensinou. Além da vara de bambu para pescar, a única outra coisa que Nico tinha era um violãozinho de fabricação própria, feito com linha de nylon e madeira de entulho. Dessa geringonça, ele tirava um som incrível. Minha prima, ligada em música, se encantou com a violinha, e Nico, desprendido, deu a ela o instrumento sem nada cobrar em troca.

De tudo isso eu me lembrava hoje enquanto caminhava por este mundo indiferente, calçado de egoísmo e habitado por individualistas, dos quais eu sou o maior deles.

Por onde andará você, Nico? Ainda por aqui, amigo de verão? Espero que sim, porque hoje mesmo te imaginei naquele banco de areia, à espera da baixa da maré, a contar-me mistérios do mar, a revelar-me coisas que não sei, valores que não tenho e que te fazem tão superior a mim.”

Para acompanhar outras crônicas deste autor, visite o site www.apalavrado.com.br.

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