A dica de hoje do jornalista Anderson Olivieri – responsável pela comunicação do Cartório de Sobradinho – é a crônica de própria autoria dele: “Gotas e farelos das pandemias”:
“Livrai-nos da peste e da fome, Senhor!”, rezou o padre Américo Novaes na esvaziada missa da congregação do colégio Santo Inácio, no Rio de Janeiro. Naquele momento, nove cadáveres em decomposição, estendidos nas mesas do necrotério da cidade, aguardavam providências – ainda ignoradas, explicou o cemitério, por falta de pessoal. Em outro ponto da capital, a polícia recolhia nas ruas os enfermos amontoados pelas calçadas e levava-os à Santa Casa, já abarrotada de doentes.
Para conter o desespero, a fé. As irmandades beneditinas e maristas saíram em procissão por várias ruas da cidade, entoando cânticos e rezas, pelo fim do flagelo da epidemia. O povo se trancou em casa, só pisando na rua por remédios e alimentos. Isso quem tinha condições, porque um elixir passou a custar o preço de um bom vinho; e três ovos, o que outrora custara um quilo de carne.
Quem relata esse cenário do Rio de Janeiro de 1919 são os jornais do período. Provocada pela Gripe Espanhola, a hecatombe abriu uma crise sanitária, social, econômica e política no país e expôs o horror da fome. Dezenas de ataques a armazéns, bodegas e padarias, feitos por gente que tossia enquanto roubava, foram registrados. Não à toa o padre Américo suplicou a Deus providências em favor dos famintos.
Pedro Nava, o médico e escritor que ao tempo da Espanhola somava 15 anos de idade, foi quem melhor descreveu o casamento da peste com a fome. Ele contou ter visto uma criança de colo, faminta, tentando mamar no seio da mãe, que jazia no chão, morta pela gripe. Tempos pandêmicos são inevitavelmente de fome. A história não deixa dúvidas sobre isso.
Nem o presente permite contestações. Um pulo da capital da República em 1919 para os dias que correm em Brasília, centro do poder do país desde 1960, confirma a união funesta da pestilência com a miséria. Da Covid-19 com a fome. Do ar, nos pulmões, e da comida, nos pratos, tão rarefeitos quanto.
Nesta Covid-19, a criança que sugava mamas secas e mortas, descrita por Pedro Nava, multiplicou-se aos milhões. Isso é resultado da trágica combinação entre a pandemia e o alto desemprego, a grave crise econômica, a insuficiente assistência social e o aumento recorde nos preços dos alimentos. Para piorar o quadro social, além de famintas, as crianças de famílias nos patamares da pobreza e da extrema pobreza sentem os efeitos da solidão a que são expostas e dos abusos morais e sexuais a que adultos submetem-nas.
Isso é o que tem afetado as crianças do Brasil, de acordo com relatórios atuais da UNICEF. Um retrato macrossocial que, no dia a dia, para ser notado, exige de nós um modo de ver que deixe de lado o olhar banalizado e insensível. Neste Brasil pandêmico de hoje, encontra-se, em todo quarteirão das cidades, uma criança – sozinha ou acompanhada – em sofrimento. É o novo normal dos menores marginalizados: fome de comida, afeto, amparo e atenção.
Foi nessas condições, faminta de tudo, que encontrei a Isabel, 8 anos de idade, sob uma marquise do Setor Comercial Sul, em Brasília. Um dos seus pés estava ferido, sem nenhuma sutura ou curativo que o protegesse. Ela expunha o machucado às imundices da rua com a naturalidade de quem assimilou, embora criança, que corpo e alma são abrigos de desgraças – e estas, portanto, devem ser suportadas.
Desconfiada, aproximou-se de mim. A cabeça baixa escondia os olhos sombrios e a máscara que um dia fora clara, mas agora ostentava as sujeiras da indigência. Ela exalava o cheiro da rua e emprestava à aparência a mesma penúria da paisagem ao redor. Emitiu um som inaudível. Pedi que elevasse a voz e o rosto, o que fez sem me encarar. Queria dinheiro. Para quê, questionei. “É fome, moço”.
Curvo a cabeça em fuga à encarada. Sinto algo estranho, um pouco de vergonha, um tanto de culpa. Qualquer criança com fome é a confirmação de que os adultos – todos – fracassaram em responsabilidade e humanidade. A poucos metros, uma lanchonete com nome de primeira classe, Embaixador, exibe as portas abertas, embora fitas isolem a entrada. A pompa diplomática, num setor de carestia, é reforçada pelo cartaz que avisa: “Vendas só por take-out. Aceitamos PIX”. O homem do caixa se incomoda com a presença de Isabel. Faz um som com a boca como quem enxota cães. Com o indicador, gesticulo que estamos juntos. Sirvo-a de suco e sanduíche de pão, antes sugerindo que nos encostemos na porta metálica da loja vizinha, toda coberta por uma imensa faixa de “aluga-se”.
Isabel é a face esfomeada, desabrigada, excluída e desempregada da pandemia. “Lockdown”, “take-out” e “home office” não compuseram o rol de opções de sua família. Havia quarenta dias, ela se estabelecera no trecho mais movimentado do Setor Comercial Sul, enquanto a mãe e o padrasto mendigavam mais acima, na região dos hotéis. Desempregados e sem condições de pagar o aluguel, a família se mudou para a rua, abrigando-se sob a escada de acesso à calçada mais movimentada do centro de Brasília. Mais gente, mais esmola, pensaram, sem se darem conta de que, por causa do isolamento, veriam, circulando, mais ratazanas e baratas do que pessoas.
Pergunto-lhe se tem irmãos, e ela detalha que são dois, ambos agora amparados por uma ex-vizinha. Sobre o padrasto, Isabel se nega a falar. Da mãe parece guardar um misto de indignação e pena. Bruscamente, ainda com um resto de lanche no saco de pão, se despede de mim com um aceno. Eu a sigo sem me deixar ser notado. Isabel escolhe um espaço ermo da calçada, senta, termina de comer e chora.
Até as lágrimas cessarem, vão-se alguns minutos. Ela então pega o saco vazio, inclina a cabeça para cima, delicadamente liga as duas bocas – a sua própria e a da embalagem – e dá umas batidinhas no fundo do gordurento papel.
Vejo o esforço de Isabel por migalhas, lembro-me do menino de Pedro Nava e me pergunto. Do saco, alguns farelinhos caíram, será que do peito morto alguma gota de leite pingou?
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