DICA DE LEITURA: “FAMÍLIA TAMANHO FAMÍLIA”, DE HUMBERTO WERNECK

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A dica de hoje do jornalista Anderson Olivieri – responsável pela comunicação do Cartório de Sobradinho – é a crônica “Família tamanho família”, de Humberto Werneck:

Não me lembro de ter visto reunidos todos os meus primos e primas pelo lado paterno – e, pensando bem, é pouquíssimo provável que isso tenha acontecido um dia, fosse ele de festa ou luto, pois a dona Dora e o dr. Hugo, cariocas transplantados para o solo fértil de Minas Gerais, espraiaram-se ali em mais de 50 netos, sem contar os três nascidos e crescidos no Rio de Janeiro; a quinta parte disso, já contei, foi providenciada por meus pais, católicos de um tempo em que convinha aceitar quantos filhos Deus mandasse. 

Como reunir no tempo e no espaço toda essa família tamanho família? O quórum máximo pode ter sido registrado num dos natais em torno da vovó Dora, neta de judeus ingleses que na infância me dava a impressão de ter nascido viúva. (O vovô – aquele professor Hugo Werneck que o ex-aluno Pedro Nava esbordoa e eventualmente elogia em Beira-Mar – se foi bem cedo, aos 56, dez anos antes de minha chegada a este vale de lágrimas. Carioca que passou a exata metade de sua existência em Belo Horizonte, para vir morrer num hospital da Avenida Paulista, como quem, nesse trajeto, estivesse desenhando o triângulo de minha vida. De quebra, ele desobjetivou (assim diria o Vinicius de Moraes) no mesmo quarteirão onde, um século depois daquele bisavô, irá nascer meu filho. Mas fechemos o parêntese, antes que você ponha em dúvida a sanidade mental do cronista.)

Ou será que o mais gordo ajuntamento de netos Furquim Werneck se deu na fazenda, nas imediações da capital mineira, num dos numerosos verões que ali passamos, distribuídos por três casas? Não importava muito, aliás, em qual casa pousássemos, pois o tempo todo estávamos juntos. Era tanta gente que a comida vinha, numa carroça, da cozinha do Sanatório Hugo Werneck, hospital para tuberculosos construído pelo nosso avô num dos cantos da fazenda, numa profusão de marmitas cuja temperatura uns belos fogões metálicos a lenha se encarregavam de manter. 

Alcancei ainda um tempo em que, não sendo preocupantes a brucelose e a febre aftosa, a meninada levava ao curral seus copos de alumínio, e, para que a farra fosse completa, só faltava sermos autorizados a ordenhar as vacas. Não longe dali, agora em trip individual, pois a simples ideia horrorizava a maioria, eu ia ver matarem porco no chiqueiro; com tamanha assiduidade que, embora nunca tenha metido a mão na massa, quer dizer, na banha, talvez tenha me tornado alguém capaz de sacrificar um leitão nos conformes. Estaria assim habilitado a executar de ponta a ponta uma velha receita, lida em algum desmilinguido alfarrábio, cuja primeira linha já eliminaria a quase totalidade dos aspirantes a piloto de fogão: “Quando matar um porco…” No mesmo livro, aliás, outra receita parecia remeter a tempos anteriores à áurea canetada da princesa Isabel: “Enquanto uma descasca, a outra vai picando…” 

Provavelmente ainda era assim, com resquícios de escravagismo, quando em 1921 o meu avô comprou a fazenda, na qual existe hoje um quilombo – mas em matéria de descascar & picar, o máximo que alcancei foram profissionais que, em borbulhantes tachos de cobre, produziam goiabada suficiente para nos empanturrar por um ano inteiro. 

Que me lembre, não se vendia essa goiabada – ao contrário dos morangos que, acondicionados em caixas de papelão, a família, num amadorismo de dar dó, tentava desovar em Belo Horizonte, não raro de porta em porta. Fosse eu alguém digno de ser biografado, caberia contar que aos 11 anos, cumprindo ordens da minha mãe, entrei no outrora glorioso, então agonizante Grande Hotel (pouso, em 1924, da famosa caravana de modernistas encabeçada por Mário e Oswald de Andrade), e ali tentei, sem êxito, vender umas caixas de morangos. Tratava-se de um dos dois solitários produtos de nossa mambembe Granja Werneck, na improvável companhia do granito proveniente de uma literal pedreira cujo britador até que às vezes funcionava. Uma vez ligaram de um restaurante para saber se havia morango – e, como naquele dia o produto estivesse em falta, a diligente vendedora, cujo nome convém silenciar, tentou empurrar a alternativa: morango hoje não tem – serve brita?

*

Já que esta prosa vadia veio dar na pedreira, seja dito que a pequena distância dali ficava o que para nós era “a cascalheira” – um morro cujo dorso, pelado numa das faces, era recoberto de cascalho de quartzo, o que tornava desafiadora a sua escalada. Nós, primos e primas na passagem da puberdade para a adolescência, gostávamos de encarar aquele desafio, cujo objetivo consistia em alcançar um pequeno platô no qual havia a sombra de uns arbustos. Ficava – já não sei se ainda fica –, esse terracinho, a uns 15, no máximo 20 metros de altura, medida que na minha memória o tempo cuidaria de multiplicar algumas vezes, ameaçando converter a cascalheira no que poderia ser o meu Everest particular.

Não havia muito o que fazer lá em cima – ou melhor, havia coisas que aquele ermo tornava possíveis, longe que estávamos do olhar de pai e mãe, longe até mesmo, quem sabe, do onipresente olhar de Deus. Um dia se passou ali alguma coisa que eu, então com 9 anos, cuidei de esquecer, mas que deixou em mim a impressão, indelével, de algo tão forte quanto condenável. Na volta à casa onde os adultos almoçavam, vergado ao peso de uma consciência plúmbea, custei a espantar a ideia de contar tudo a minha mãe – sinal de que sabia muito bem da gravidade do ato de que tinha participado. Não só eu, aliás: enquanto levávamos cascalheira abaixo nossas pesadas consciências, alguém sugeriu uma pausa para, de joelhos no cascalho, pedir perdão ao Criador, e assim foi feito.

Mais destemido que eu naquele tempo, e vitaliciamente dado a rompantes, meu irmão Rodrigo não suportou a culpa e abriu o verbo com o nosso pai. No final de sua primeira conversa “de homem para homem”, estava aliviado, pois afinal nada de tão grave assim havia acontecido, nada que merecesse palmada ou corte de mesada: naquela tarde na cascalheira, todos nós, meninos e meninas, nos rendemos à sugestão de um primo mais vivido e, alguns envergonhados, outros até que bem desinibidos, por um momento vimos e deixamos ver as nossas prendas. Foi naquele dia, me conta o Rodrigo, que o papai o chamou de lado para um papo meio botânico a respeito de uma sementinha, diferente daquelas que havia na fazenda, a ser plantada exclusivamente na intimidade e recato da alcova conjugal.

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