A dica de hoje do jornalista Anderson Olivieri – responsável pela comunicação do Cartório de Sobradinho – é a crônica “Na grande área”, do saudoso jornalista e cronista Armando Nogueira. A crônica abaixo manteve a grafia do tempo em que foi escrita – 21 de novembro de 1969:
Um amigo me telefona, cedinho, para insister na reação do primeiro momento: gostara de ver Pelé fazer o milésimo gol, mas preferia que não fosse de pênalti porque, “de pênalti, não teve muita graça”.
Assim também chegara a pensar o próprio Pelé, antes de ver a bola morrer (ou nascer) no fundo da rêde. Tanto que ameaçou refugar, coerente com afirmações anteriores de que se lhe tocasse encerrar o balanço com gol de pênalti, passaria a bola a outro jogador.
E, no entanto, na hora de fazer o gol-símbolo de sua vida, Pelé não poderia merecer do futebol distinção maior: o estádio imenso, o silêncio musical da multidão, a côrte de parceiros e rivais em tôrno dele, imóveis; a bola, proibida de todos, a seus pés – e uma eternidade para chutá-la, pois só aí a lei do futebol oferece o privilégio de estender indefinidamente o jôgo até que se cumpra de todo o ritual do pênalti.
O gol de ação, o gol de movimento – esse, Pelé já fêz 999 vêzes, chutando bolas suadas, bolas sangrentas, bolas mortas, bolas vivas, divididas.
O gol dos deuses, bola no peito, três dribles verticais, um chute mortal – Pelé já fêz tantos.
O gol dos meninos, quantos Pelé já não fêz?, driblando defesas inteiras?
O gol dos espertos? Pelé já fêz: um dia, num córner, enlaçou o braço no braço de um beque e gritou em desespero: “Está me agarrando!” O árbitro marcou pênalti, Pelé chutou e fêz o gol.
O gol dos sonsos, Pelé também já fêz, capengando, de mentira, na meia-lua, e logo surgindo na pequena área, encontro marcado com a bola, antes do córner, antes do jôgo, muito antes de tudo e de todos.
Faltava-lhe, porém, fazer o gol feito, que é o gol da multidão, o gol de todos os testemunhos, o gol que ninguém no estádio, por descuido ou infortúnio, deixasse de ver, florescendo de seus pés, como já disse, tão amados.
Era preciso, sim, o cerimonial de um pênalti para nos compensar de tantos gols bonitos que êle fêz nesse milhar e que nos escaparam na vertigem da ação coletiva.
Abençoado é o pênalti que não castiga, mas gratifica: quando Pelé, no fundo da rêde, beijou mil vezes a bola do seu gol-símbolo, o estádio viveu um instante de libertação – e Pelé, mais um de consagração. Éramos, ali, uma doce multidão de crianças, reencontrando a bola da nossa infância.
Nunca, que eu saiba, a multidão participou tanto de um gol, pesadelo e sonho de Pelé – e de todos nós.
Fiquemos, pois, com a graça de uma noite de reencontro.
Que dêle seja a bola que renasceu com êle, no instante de um gol-sacramentado.
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